segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Laura Apparecida Morano Mendes Coutinho


Laura Apparecida Morano Mendes Coutinho
com 77 anos, recorda uma trajetória de luta e 
superação na cidade que a acolheu. 
Os Campos Elíseos enfeitaram sua infância e juventude, 
quando trabalhou como operária 
em fábricas que não existem mais.


Tecendo e fiando memórias


Nasci em Uberaba, Minas Gerais, em 1935. Em 1946 nossa família chegou em Ribeirão – mamãe, eu e mais quatro irmãos, dois homens e duas mulheres. Papai já estava trabalhado aqui há quase um ano e foi assim que conseguiu comprar um terreno a prazo e construir dois cômodos para nos abrigar.
Eu tinha apenas 11 anos, mas me lembro como se fosse hoje. Chegamos de trem de ferro, a antiga “Maria Fumaça”. Ribeirão nessa época tinha três estações: uma situada onde hoje é o bairro do Quintino II, chamada Estação do Alto, que ainda existe; a Estação do Barracão, no bairro que depois passou a se chamar Ipiranga; e a Estação do Centro, que não existe mais e era perto da Vila Tibério e da rua Luís da Cunha.
Na Estação do Centro, quando fechavam a porteira para o trem passar, os pedestres passavam por um túnel que tinha uma escadaria.
Minha mãe e os cinco filhos descemos na Estação do Barracão. Roberto, noivo da minha irmã mais velha estava nos esperando e fomos a pé até a casa da mãe dele, dona Maria. Andamos muito até chegar na rua João Clapp e descobrimos que dona Maria morava numa casinha que pertencia ao asilo chamado Lar dos Vicentinos. Era um quintal onde havia várias casinhas e um só portão de entrada e saída.
Há muito tempo reformaram o asilo e as casas não existem mais, O lugar, no entanto, ficou bem grande, confortável e bonito e continua funcionando até hoje.
Chegamos na nossa nova morada, na rua Aliados, embora naquela época não existissem placas de rua. Mamãe ficou muito feliz.  Papai era pedreiro e com muito sacrifício fez os dois cômodos – a cozinha e o quarto, onde dormiam meus pais e os cinco filhos. A casa era “de chão”, não tinha reboque nem luz. Tínhamos uma lamparina de querosene e a fumaça era muito fedorenta. A gente amanhecia com as narinas pretas de inalar a fumaceira do querosene.
Também não tinha esgoto, era foça. E a privada era um buraco. Faltavam algumas telhas e a gente dormia admirando as estrelinhas no céu. Água encanada também não tinha. E durante muitos anos tirávamos água do poço que o papai furou e chamava de cisterna. Tinha o sarrilho para puxar a água com balde e de vez em quando a água sujava. Aí precisava limpar todo o barro solto até a água ficar limpa.
Uma vez precisou limpar o poço e meu irmão mais velho não teve coragem de descer pela corda pra limpar. Eu que desci lá no fundão. Mamãe me amarrou num pedaço de pau como se fosse um balanço. Eu montei a cavalo nesse “balanço” e ela foi me descendo devagar. Eu só falava pra ela olhar se não tinha cobra. Mamãe descia o balde pela corda, eu pegava aquele barro e colocava no barro. Ela puxava até aparecer água limpa de novo. Depois disso, meus irmãos criaram coragem e desciam pra limpar a cisterna.
Morávamos perto da avenida Saudade com rua Humberto de Campos e ali perto havia poucas casas. Descendo a avenida, depois do Cemitério só tinham duas ruas. O resto eram largos por onde transitavam carroças, sem casas, só mato, com gabiroba. Tinha também umas árvores chamadas Arueirinha e não era qualquer pessoa que podia subir nelas – minhas irmãs ficavam todas empipocadinhas. Eu não, eu subia.
Tinha uma escolinha, onde a professora chamava Cândida Teixeira Golfetto, mas todo mundo a conhecia como dona Filinha. Tenho muita saudade dela. A escolinha era só um salão, onde as crianças estudavam todas juntas, 1, 2 3 ano primário. Fui matriculada no 3.
Passei de ano e fui estudar no “4 Grupo Escolar”. Tirei o diploma em 1948, com média 98 e não continuei os estudos. Naquela época os pobres só ganhavam bolsa de estudo se tirassem diploma com 100. Nunca me esqueci da minha professora. Ela se chamava Alice de Castro Prado. Como gostaria de reencontrá-la.
Antes de chegar em Ribeirão, de tanto meu pai mudar de cidade em cidade, eu atrasei todo meu estudo. Quando saímos de Uberaba eu tinha 8 anos e cheguei em Ribeirão com 11. Nesse período de três anos fomos para Conquista, em Minas, de lá meu pai mudou para a Usina Junqueira, depois voltou para Conquista e de lá foi para a Fazenda do Barro Preto. Eu e meu irmãos ficamos em Conquista para podermos ir na escola. Só íamos pra casa aos sábados.
Nessa época morei na casa da minha tia e madrinha Amélia e fui pajem da minha prima Sonia, quando ela tinha um aninho. Hoje as duas já morreram, mas eu tenho muita saudade. Na escola em Conquista, a professora me deu uma poesia bem grande pra decorar em duas semanas. Tinha XI versos. Até hoje não esqueci. Chamava “A Flor de Maracujá”  e eu declamei numa festa.
Já em Ribeirão, de onde eu morava até a Rua Pernambuco a gente podia cortar caminho, porque o cemitério só ia até a cruz que tem lá no meio. Era o caminho da “roça”. Tinha um pomar enorme do asilo Padre Euclides, encostado no muro do cemitério. Um dia meu irmão e uns colegas foram pegar laranja, colocaram as laranjas dentro da camisa e voltaram pelo cemitério. Era noite e eles subiram num galho pra pular o muro. O galho quebrou, no escuro, e vinha descendo um homem todo de branco. Meu irmão contou que ficou mudo de susto e disparou pelo caminho de volta.
As crianças também faziam caveira com mamão verde, colocavam uma vela dentro e punham em cima do muro do cemitério. Ficava todo mundo escondido esperando alguém levar susto. Lembro-me também da famosa quermesse do asilo, com um trenzinho que circulava dentro do pomar. Era muito gostoso e divertido.
O ônibus só chagava até o começo do Cemitério, onde hoje é a rua Flavio Uchôa e depois voltava pela avenida Saudade que, na época tinha um canteiro no meio, com árvores grandes e em frente ao asilo havia um monumento. Na avenida tinha também o Educandário, que na época começava ali e já abrigava crianças. Era muito bonito, com sua entrada formada por grandes colunas e dois arcos.
No bairro já tinha também o Bosque Municipal, onde sempre gostei de passear. Outro lugar que passeávamos bastante era na casa de um tio-avô que morava na Fazenda Aliança. A avenida Portugal era um estradão de terra, onde passavam as boiadas. Nós íamos por ali passando pela Santa Cruz, até chegar na fazenda.
Nos  Campos Elíseos tinha três cinemas, dois na avenida Saudade, o Cine Santana e o Cine Campos Elíseos. O outro era o cine Santo Antonio, na rua Paraíba, ao lado da igreja de mesmo nome. Neste cinema eu arrumei meu primeiro namorado, quando tinha 17 anos. E, anos mais tarde, com 21 casei-me na Igreja Santo Antônio, a belíssima construção que todo mundo conhece. Na minha adolescência também conheci o Cine Avenida, que ficava na Jerônimo Gonçalves. Ali assisti ao Ébrio, com o grande Vicente Celestino e no Cine São Jorge vi Luís Gonzaga,o Rei do Baião. Fui muitas vezes também no Cine Plaza, na Duque da Caxias, em frente a Praça XV, onde também ficava, em outra esquina, o Cine Centenário. E assisti muito filme no Cine São Paulo, na São Sebastião, pertinho da Álvares Cabral. Infelizmente nenhum desses cinemas existe mais. 
Na Saudade com a João Clapp lembro-me do famoso Café Bestetti e. antes da rua Tereza Cristina tinha um hospital de doentes mentais chamado Esquirol. Jamais esquecerei do Círculo Operário, na rua São Paulo, que ainda existe, mas não tem mais as atividades que tinha na minha adolescência. Mamãe nos levava lá para assistir a dramas e duplas de cantores muito bons. Depois até ganhei muitas serenatas de um deles, que acabou se mudando para São Paulo e eu nunca mais vi. 
Também na avenida Saudade  já existia a nossa querida Santa Casa que ainda está de pé e bem firme. Na esquina com a rua Patrocínio tinha uma fábrica de vassouras e, com 13 anos fui trabalhar lá. Foi meu primeiro emprego
Minha mãe passou a trabalhar na Fábrica de Tecidos Matarazzo e graças a Deus, aos poucos a casa foi aumentando, até que terminou com três quartos, sala, cozinha e banheiro.
Quando completei 14 anos entrei na Matarazzo, onde trabalhei com teares que fabricavam os tecidos de algodão. Essa fábrica era muito grande - havia muitos salões com maquinário e centenas de empregados. Chegavam caminhões com fardos de algodão ainda com caroço e dali saiam depois tecidos alvejados, crús e estampados. Quando me casei, em 1956, sai da fábrica. Só 30 anos depois, em 86, voltei a trabalhar na mesma fábrica. Só que não era mais dos Matarazzo e passou a se chamar Cianê. Trabalhei ali até 1994, quando fecharam a fábrica.
Nos anos 80, eu jogava Bocha e era atleta do Clube Ipanema. Parei quando voltei a trabalhar. E quando a Cianê fechou comecei a frequentar o Núcleo da Terceira Idade dos Campos Elíseos e jogava para a Seleção de Ribeirão Preto. Depois precisei parar por causa de dor no ombro. Não pude mais ser atleta, mas hoje sou atriz. Faço teatro com o grupo do Núcleo. Já apresentamos várias peças em diferentes lugares com muito sucesso. Já fiz parte também do Coral e como gosto muito de bordar, ensino bordado em casa e em outros lugares.
Atualmente, quando vejo o prédio da antiga Cianê, vejo que o local está num abandono total. A gente, que trabalhou ali, fez amigos, sustentou a família, viveu tanta coisa, sente muita tristeza quando passa por lá.

3 comentários: