segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Antonio Carlos de Araujo

Antonio Carlos de Araujo teve pai ferroviário 
e acompanhou as lutas da categoria na época 
das greves. Aprendeu o ofício de gráfico, 
trabalhou muito, ganhou e perdeu. 
Mas lembra com uma incrível memória dos 
bons tempos da mocidade e de muitos lugares 
de Ribeirão. E hoje sabe que o que fica 
é a dignidade e o respeito.



Sem parar de Lutar


Nasci em Ribeirão Preto, na Vila Tibério, no ano de 1940. Meu pai, João Araujo, trabalhava na Companhia Mogiana de Estradas de Ferro, numa época em que o pagamento costumava atrasar muito, às vezes até três meses.
Na época do governo Ademar de Barros aconteciam fortes greves dos ferroviários que a essa altura estavam completamente sem crédito nos armazéns para poderem fazer suas compras e sustentar a família. Meu pai contava que a Mogiana colocou uma cooperativa a disposição dos empregados – um vagão com mantimentos estacionado no pátio da Estação.
Essa era a única saída para comprarem, mas o valor total das despesas acabava engolindo quase todo o salário mensal de cada operário.
Dessa forma, aos 7 anos de idade eu precisei começar a trabalhar. Pus uma caixinha de madeira no ombro e fui engraxar sapatos na Praça XV de Novembro e em outras praças da cidade.
Fiz o curso primário do Terceiro Grupo Escolar, hoje Sinhá Junqueira, na praça Coração de Maria. Lembro-me bem da professora Elena, do segundo ano. Aos 15, entrei numa fábrica de vidros na rua Martinico Prado, entre a Conselheiro Saraiva e a Conselheiro Dantas, também na Vila Tibério. O local era muito insalubre, com um forno que lançava uma chama alta sem parar. Eu, que era muito franzino, só suportei durante um ano e meio. Aí um médico me orientou a sair.
Com 18 anos comecei a entregar jornal. Era O Diário, então de propriedade de Costábile Romano e situada na Américo Brasiliense 150. Ali trabalhei numa máquina manual Minerva durante um ano. Depois fui para a Gráfica Cravinhos, na rua José Bonifácio, ao lado do Mercadão. Mais tarde, outra mudança, para a Gráfica Eduardo, na mesma rua.
Na juventude, durante a década de 50, frequentei muito o Cine Avenida, que era na Jerônimo Gonçalves, entre a Duque de Caxias e a Mariana Junqueira. Ali assisti a filmes como O Zorro, Flash Gordon e Tarzan. Próximo à porta do cinema estacionavam carrinhos de garapa, pipoqueiros e vendedores de amendoim. Além disso, tinha um porteiro que volta e meia era enganado pela garotada que entreva sem pagar ingresso. No interior do cinema, circulava um moço com uma lanterna, o lanterninha, vasculhando tudo.
Havia outros cinemas em vários locais da cidade. O Santa Helena, na rua Lafaiete, na Praça Sete de Setembro; o Cine São Paulo, no térreo do Edifício Diederichsen, na rua São Sebastião; o São Jorge, lá embaixo, no início da Álvares Cabral. O Teatro Pedro II, no Quarteirão Paulista, também tinha virado cinema e lá a gente via filmes de cowboys e do Mazzaropi. Na Vila Tibério tinha o Cine Marrocos, na Luís da ampos Elíseos, na Avenida Saudade, além do Cine Santa Teresinha, no final da Visconde Inhaúma, onde era a Vila Japão.
Era um monte de cinema e a gente assistia grandes filmes como E o Vento Levou, Os Dez Mandamentos e Ben-Hur. Os garotos catavam sucata de ferro velho, fios de cobre e alumínio para juntar dinheiro e assistir aos seriados no Cine Avenida.
Eu também costumava assistir espetáculos no Circo Rosário, perto da Rodoviária e nos finais de semana frequentava a Praça Coração de Maria, na Vila Tibério, onde existia um coreto com uma banda, que chamavam de “ a furiosa”. As moças andavam em círculo para um lado e os moços para o outro. Com o rabo do olho, admirávamos as meninas com suas fitas prendendo os longos cabelos e os vestidos armados pelos saiotes.
Ali perto da praça, no quarteirão de baixo, havia uma sorveteria que também era um barzinho e pelo alto falante ouviam-se músicas românticas da época e os apaixonados as ofereciam para as moças. O convite dos rapazes para as moças na época costumava ser: “Posso acompanha-la até a sua casa?”  Mas o difícil mesmo era pedir autorização de namoro para os pais delas.
Outra paixão era o futebol. O estádio Luís Pereira, do Botafogo, ficava entre as ruas Paraíso e Barão de Cotegipe, na Vila Tibério. Ficou lá até 67, e reiniciou suas atividades no Estádio Santa Cruz, em 68. No antigo e acanhado campo, a rapaziada torcedora do time que não tinha dinheiro pulava o muro e caia do outro lado nomeio da multidão, onde não existiam arquibancadas. Em volta do gramado havia uma cerquinha de ripas de jogadores, mesmo quando um atleta ia cobrar um tiro de canto.
Nas gerais altas e de madeira, muitos grandalhões tomavam umas cervejas e viravam valentões – se desentendiam com os rivais e brigavam de mãos limpas. A polícia prendia todo mundo que estava na briga e eles eram transportados na Ramôna, o carro de presos. Mas na rua eram soltos, afinal a maioria era formada por trabalhadores.
Uma  grande emoção foi a partida que levaria o time para a primeira divisão: Botafogo F.C. e Rádio de Mococa. Todos com a emoção à flor da pele; gritos, frases de incentivo. Mas mesmo um bom atleta chutando um pênalti a favor da casa, não garantiu a vitória. Que tristeza! Final zero a zero. Então, no ano seguinte o time subiu pela primeira vez – Paulista de Jundiaí zero, Botafogo um.  
O Comercial era no campo da Mogiana. Estádio Costa Coelho, na avenida Primeiro de Maio com a Guatapará, na Vila Virgínia. Gerais também de madeira. Ali vários comercialinos tiveram a oportunidade de assistir naquele gramado a famosa equipe do Santos F.C. com Pelé, Pepe, Gilmar e outros craques.
Lembro-me também, perfeitamente, da Paulicéia, um bar e lanchonete que ficava entre as ruas General Osório e Álvares Cabral, no Quarteirão Paulista, onde hoje está o Pinguim 2. Ali em frente a garotada comprava as famosas figurinhas Atlas.
Numa das portas havia uma grande radiola, muito bonita e através da janela de vidro viam-se os discos 78 rotações empilhados, um braço com agulha amarelinha na ponta do lado de baixo. No balcão, compravam-se fichas que eram colocadas numa abertura do aparelho, fazendo cair um disco no prato; tocava-se, então umas teclas com o nome da música e o braço mecânico caia com a agulha sobre o disco e ouvíamos a música escolhida. d valsas, canções, sambas, tangos e tantas outras com os famosos cantores da época, como Silvio Caldas, o Caboclinho querido, Carlos Galhardo, a voz de veludo, Francisco Alves, o cantor das multidões.
Casei-me em 1963, com a Rosa, na Igreja Santo Antônio, dos Campos Elíseos. Tivemos dois filhos, Roberto e Rônei. Minha mulher trabalhava nas Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo e aos poucos pudemos começar a construir nossa casa. No começo foram dois cômodos, na rua Monte Alverne, na Vila Tibério.
Aos poucos fui aumentando a construção e como a dívida aumentava, eu pedia para fazer horas extras. Assim construí meu pequeno patrimônio – um sobrado que resultou de 25 anos de trabalho. Nessa altura, meus dois filhos se casaram e já trabalhavam em gráfica também. 
Aposentei-me em 1986, mas continuei trabalhando em gráfica mais 7 anos. Depois comprei uma moto e comecei a fazer entregas de remédios para uma farmácia de manipulação
Mas houve alguns percalços duros. Um deles muito triste, quando perdi o que tinha com um mau negócio. Fui aconselhado a vender o sobrado e comprar um caminhão para transporte de cana de açúcar, que custou mais do que o valor da casa. Calculei que ganharia um lucro nesse trabalho que me permitiria juntar um bom patrimônio outra vez. Mas os gastos eram maiores que os ganhos e acabei ficando sem dinheiro e sem casa para morar.
Nessa época foi muito triste- sempre que eu e minha mulher nos olhávamos chorávamos copiosamente e ficamos muito abalados. Mas toquei a vida. Empreguei-me novamente em farmácias de manipulação. Após um ano, porém, mais um tropeço. Tive problemas de saúde, meus rins pararam de funcionar e fui internado no Hospital das Clínicas.
Mais uma vez superei o problema e empreguei-me como vigia numa firma da cidade, no bairro da Lapa. Protegido por um guarda-sol de praia, às vezes sentado numa cadeira, espero os caminhões chegarem para abrir o portão e assim vou indo.
Sou amigo de todos que transitam por ali, pessoas, cães e pássaros, tanto faz. É “bom dia dona Maria, boa tarde seu João”. Hoje sei que os períodos de tristeza já passaram e a revolta, o vento levou. O que fica é o trabalho, o respeito e a paciência que hoje me fazem um homem feliz.

Um comentário:

  1. Somos de gerações diferentes, mas sinto que tivemos as mesmas lembranças de infância em alguns aspectos. Obrigado por me fazer lembrar a nossa Ribeirão!

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