segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Rita Vietal de Carvalho


Ritinha é um doce de pessoa. Aos 82 anos 
mantém uma delicadeza e uma doçura enormes, 
além de uma memória incrível que a faz
 lembrar da maria fumaça no Barracão 
e do trabalho na Matarazzo
Dos teares de algodão à descoberta da música

Meu nome é Rita Vietal de Carvalho e nasci em Ribeirão Preto, em 1930. Papai era ferroviário, sua função era “Guarda-Trem”, ou picador de passagens. Mamãe cuidava dos afazeres da casa, mas lavava roupa pra fora para ajudar nas despesas da casa pois éramos em sete irmãos, além de um sobrinho de meus pais que também morava conosco.
Morávamos na Vila Tibério, na rua Martinico Prado a três quarteirões da igreja Coração de Maria. Nessa época ainda não havia a praça nem o grupo escolar. A igreja ficava perto de uma chácara. 
Com seis anos fui matriculada na Escola Sociedade Amiga dos Pobres, na rua Castro Alves. Ali fiz o primeiro, o segundo e o terceiro ano. Lembro-me de um dia que eu não queria deixar que me vacinassem na coxa porque tinha vergonha. A professora me segurou e eu dei uma mordida na mão dela. Resultado: todos os alunos saíram para o lanche e eu fiquei de castigo e com muita raiva da professora. Pra completar, ao chegar em casa ainda levei outra bronca. Ufa!
Ficamos muito alegres quando papai comprou um terreno nos Campos Elíseos e construiu dois cômodos. Mudamos e fui matriculada no 4 Grupo Escolar Antonio  Diederichsen e aos 10 anos recebi meu diploma do então curso primário. Lembro-me que nessa época havia uma ponte seca e outra que atravessava a água para irmos na Vila Tibério. Era um campo aberto onde hoje fica a rotatória Amim Calil.
Lembro-me também da Estação do Barracão da qual o trem saía todo dia às quatro da tarde e a gente ia todo dia ver o trem sair depois de fazer manobras. Eu levava o almoço pro meu pai e deixava com o maquinista. Agora a estação está desativada. A outra estação ficava no centro da cidade e agora, de lembrança só tem uma Maria Fumaça em exposição.
A ruas dos Campos Elíseos eram um poeirão só. Em frente a nossa casa veio morar uma família de japoneses. Um dia desceu uma boiada da fazenda Baixadão e para surpresa de todos, a boiada estourou, derrubando os muros das casas. Foi uma gritaria
Havia uma lojinha perto da Igreja da Vila Tibério cujos donos eram  de uma família árabe. Minha mãe tinha crédito nessa loja e acabou me levando para trabalhar com a família. Meus pais eram muito bons, mas bem enérgicos. Lembro-me que eu não queria trabalhar e voltei pra casa. Ela não teve dúvida: me levou de volta pro serviço na marra. Algum tempo depois a loja se mudou para a rua Saldanha Marinho com o nome de Bazar Estrela e lá trabalhei até a idade de 16 anos. O dinheiro que ganhava ia todo para a mão de meus pais.
Logo depois da Fábrica Matarazzo se instalar aqui eu fiz uma ficha e fui trabalhar lá, onde fiquei até os meus 23 anos, quando sai para casar. Trabalhava na fiação, onde produzíamos os fios de algodão. As máquinas eram impressionantes. Entrava a saca de algodão e saía o tecido estampado do outro lado. Nessa época não havia refeitório e mamãe levava a marmita pra mim na hora do almoço. No fim do dia, eu saía branquinha de pó de algodão.
Em 1952, quando fiquei noiva pude ter um dinheiro na mão pra fazer o enxoval. Eu comprava peças de algodão cru, alvejava e desfiava a barra, amarrando depois como macramê. Meu pai nos deu somente um ano de noivado. Em 53 saí da fábrica para casar e no ano seguinte meu filho nasceu aos seis meses. Eu fiz uma cesária, estava fraca, mas tinha que trabalhar de novo e foi bem difícil. Meu marido trabalhava como chefe de cozinha no Hotel Brasil.
Fui trabalhar com uma família como arrumadeira e pajem (que era como chamavam as babás) de uma menininha. Depois de quatro anos, mudei para a cidade de Leme, mas não ficamos muito tempo – uma noite houve um terrível temporal e meu marido, que trabalhava à noite, não estava. Morávamos perto de um rio e eu, sozinha com meu filho em casa, tive que sair com água até o joelho. Fiquei assustada e resolvi voltar pra Ribeirão. Fiquei uns dias com meus pais e logo meu marido também voltou. Nessa altura eu já trabalhava com a família Schroeder, na rua Campos Sales com Tibiriçá. Trabalhei também para outras famílias em Ribeirão.
Mais tarde fui para a Cooperçucar e nos anos 70, depois de fazer um curso, fui trabalhar no Sanatório Espírita Vicente de Paulo, na rua Pará, no Ipiranga. Ali tive um dos encontros mais emocionantes da minha vida. Uma noite, quando fazia um plantão, fui chamada para recolher uma paciente. Qual não foi minha surpresa ao reconhecer aquela linda moça como uma menina de quem tinha sido pajem anos antes. Nos abraçamos e choramos muito.
Eu disse a ela que ali não era o seu lugar, falei com o médico e ela foi encaminhada para Itapira para fazer um tratamento adequado. Esses e outros acontecimentos foram grandes lições de vida que tive nesse período. Aprendi a ouvir com amor e paciência e perceber que os seres humanos têm cada um o seu problema.
Nos intervalos ainda trabalhava como diarista e revendedora de cosméticos. Fui também voluntária no asilo Padre Euclides, onde conheci a irmã Ritinha, minha xará, um amor de pessoa.
Em 1991 me aposentei e depois de alguns anos entrei em depressão – sentia muita falta do meu trabalho. O que me salvou foi conhecer o grupo da Terceira Idade do Sindicato dos Empregados do Comércio. Me ajudou muito. Participava do teatro, do coral e hoje sou até porta-bandeira do grupo. 
Aos 73 anos comecei a aprender a tocar violão. Um dia o professor me disse: “Um dia você ainda vai compor suas músicas”. Fui tentando, ele me ajudava com o seu violão e em 2005 gravamos 19 músicas e fizemos um CD muito bom. No ano seguinte participei de um concurso de poesia do Sesc, onde ganhei uma medalha de honra ao mérito e repeti a dose nos anos seguintes.
Atualmente tenho aulas de teclado que, junto com o violão, me distraem e trazem alegria. Hoje sei que elas fazem parte da vida, assim como as tristezas, mas o melhor é guardar as lembranças boas e lutar sempre para ser feliz. Aleluia!

Sebastião Cunha

Ele garante que é sobrinho-neto de um dos 
antigos reis do café, o poderoso Coronel 
Joaquim (Quinzinho) da Cunha. E até conta a 
história com detalhes. Aos 81 anos, 
Sebastião Cunha é cheio de atividades e 
tem muitas outras lembranças pra contar.


Esquadrias e Política

Eu nunca soube direito coisas sobre minha família. Só conheci um avô paterno. Há pouco tempo, porém, lendo livros e jornais da época, descobri muita coisa sobre a família Cunha. Os primeiros vieram de Portugal – eram três irmãos e foram para Minas Gerais, na região de São João del Rey, perto do Rio da Morte, onde exploraram ouro, por volta de 1700.
Muito mais tarde, seus descendentes vieram parar em Ribeirão, primeiro na região de São Simão para onde trouxeram criação, entrando na região de Santa Rita, porque até então Ribeirão nem existia. Acabaram tomando posse de terras por aqui, desde o rio da Onça até Sertãozinho .
Eram três: Emerenciano Alves da Cunha, Maximiliano (pai do Quito Junqueira) e Luís da Cunha (que foi marido da dona Iria). Um deles era caçador. Aqui plantaram café e foram trazendo parentes de Minas onde os Cunha já haviam começado a casar com os Junqueira.
Meu avô, José Saturnino da Cunha, é descendente desse povo e irmão do Coronel Quinzinho. Mas não sei como ficou pobre. Quinzinho morreu aqui mesmo 1932 e meu avô foi para a cidade de Taiuva, onde passou a viver e morreu lá.
Eu, então, nasci em Taiúva, em 1931, e trabalhei na roça com meu pai dos 7 aos 17 anos. Aos 12 anos também tocava trombone e pistão na banda da cidade. Me apaixonei perdidamente por uma menina chamada Elídia, mas quando ela me falou que não ia casar com moço da roça, saí andando por esse mundo afora. Larguei tudo, peguei o trem e pensei  “até onde ele for, eu vou junto”. Ele foi até Morro Agudo.
Nunca tinha saído da roça e foi naquela cidade que aprendi o ofício de ferreiro e arrumei meu primeiro emprego em Pontal, como auxiliar de ferreiro. Gostava muito daquela vida, e foi lá, tocando numa festa, que conheci minha futura esposa, Juvenir. Casei com 22 anos, depois de ter trançado por várias cidades vizinhas procurando ganhar melhor na profissão.
Nos anos 60, com nosso filho, viemos para Ribeirão, que já era uma cidade próspera, mas muito menor e mais sossegada do que é hoje. Ainda se andava sossegado nas ruas. Só existiam os bairros mais antigos como a Vila Tibério, os Campos Elíseos, a Vila Virginia, o Centro, Higienópolis, por aí. E as coisas ainda eram na confiança- caderneta na venda da esquina porque ainda não tinha supermercado, shopping essas coisas. E a maioria das pessoas se conhecia.
Aqui montei minha própria oficina de esquadrias metálicas que, na época, eram uma novidade. A oficina era na rua Anita Garibaldi e só trabalhávamos eu e um ajudante. Fazíamos venezianas, portas, grades – a primeira grade alta com ponta em lança da cidade fui eu que fiz. Até então ninguém tinha grade alta em casa. Eram grades baixinhas, com portão pequeno e a gente podia ver os jardins. Com o tempo, todo mundo foi subindo as grades.
Foi na minha oficina própria que cresci profissionalmente e pude ir fazendo um pé de meia. A clientela ia aumentando e eu conhecendo mais gente. Fiz também a primeira casa do Jardim Mosteiro(que na época era um bairro novo). Eu e os pedreiros. E moro lá até hoje.
Sempre gostei de política. Tinha sido presidente do Partido Trabalhista Brasileiro em Taiuva. Aqui conheci o Gasparini e virei seu cabo eleitoral. E, modéstia a parte, eu era bom- sabia falar e acho que ajudei a reeleger o Gasparini. Fui candidato a vereador três vezes – uma com ele e duas com o Marcelino Romano.
Depois de trabalhar  muito e formar meu filho engenheiro resolvi me aposentar. Pra continuar teria que atualizar o maquinário, investir muito. Achei melhor parar em 88.
Mas tenho uma vida pra lá de boa. Aliás, bastante agitada. Moro com a mulher o filho, a nora e os netos – todos na minha casa. Mas faço meu próprio café da manhã, 2 horas de exercício, leio a Bíblia e o jornal A Cidade inteiro. E ainda participo de vários grupos de coral e teatro. Ou seja, ando tão ocupado que hoje não tenho tempo nem de trocar uma torneira.

Aracy da Silva Tonich

Aracy da Silva Tornich, 75 anos, foi a 
primeira bancária de Ribeirão e 
lembra da Vila Tibério cheia de chácaras 
dos italianos
 
Dias e noites da Praça XV e da Vila Tibério

Vim de uma família pobre mas com certo conforto e dignidade. Meu pai se chamava Manoel Cândido Silva e trabalhou na roça até 1941 quando viemos de mudança para Ribeirão Preto.
Em 45 ele conseguiu uma vaga na prefeitura como Guarda Municipal e trabalhava na Praça XV, onde era muito conhecido como “seu” Manoel,  o guarda. Passou pelas administrações do Coronel Condeixa, Costábile Romano, Gasparini por duas vezes e outros. 
Era muito querido pois cuidava com muito carinho da praça. No jardim, plantava roseiras de várias espécies e não deixava ninguém destruí-las . Além disso, fazia lindos buquês e pela manhã agraciava as esposas dos prefeitos com eles – a esposa do Gasparini foi a que mais ganhou flores.
No início, trabalhava na praça das 18 hs às 6 da manhã. Mais tarde passou para o turno das 15 às 23 hs. Aposentou-se aos 70 anos contra a vontade. Por ele, trabalharia até morrer. Amava seu ofício e na praça deixou uma vida inteira e  milhares de amigos. Entre seus chefes estavam o seu Antônio Palocci, pai do futuro prefeito, e seu Ângelo Minto, pessoas inesquecíveis.
Eu nasci em 11 de julho de 1937, na Fazenda Dumont. Em 39, a família mudou-se para o sítio Santo Antonio, em Sertãozinho. A vida era dura e quando minhas irmãs mais velhas tiveram que começar a estudar, mudamos para Ribeirão. Viemos com  a mudança para a rua Bartolomeu de Gusmão, na época, número 141, na Vila Tibério. Era 3 de janeiro de 1941.
Nesse tempo havia no fim da Vila Tibério, uma espécie de corredor, uma viela com porteira para as pessoas transitarem. O nome desse lugar era Corredor dos Calabreses, acho que por causa do tanto de italiano que morava por ali. Havia muitas chácaras nesse local, com muitas famílias, todas vindas da Itália. Hoje não existe mais. Os patriarcas morreram todos e ficaram os descendentes. E onde era o corredor fica agora a rua Paranapanema, que é continuação da Bartolomeu de Gusmão.
Para chegarmos ao conforto de hoje, sofremos muito, amassamos muito barro e comemos muita poeira. Os paralelepípedos iam até a rua Conselheiro Dantas, em frente  ao 3 Grupo Escolar, hoje Sinha Junqueira.
Mas tudo passou. Em 49, eu já havia terminado os 4 anos do grupo e fui estudar na Escola Industrial Martiniano da Silva. Lá fiz o curso Básico Industrial, equivalente ao ginasial.
Esse preparo foi muito bom para eu enfrentar tudo que viria pela frente anos mais tarde. Em 53 terminei meu curso e fui trabalhar como ajudante da secretária no colégio Moura Lacerda. Ali aprendi a datilografar, escrever à máquina, como se dizia na época. Fiz o curso de datilografia e era incrivelmente rápida- chegava a escrever cerca de 103 palavras por minuto. Lá fiquei por mais ou menos um ano e fui para o escritório Spadoni, também como secretária.
O proprietário era o doutor Luiz Aldo Spadoni, que tinha uma loja de venda de máquinas pesadas, tratores, implementos agrícolas. Nessa época eu era uma jovem bonita, esbelta, atraente e muito esperta. Era também muito católica, ia à missa todo domingo. Tinha boas amigas.
Certo dia estava trabalhando no escritório, que ficava na Américo Brasiliense com a Tibiriçá e o doutor Luis Aldo conversava com o doutor Arouca, cujo cliente estava alugando um edifício ali perto para instalar uma agência do Banco da Lavoura de Minas Gerais. Doutor Arouca, impressionado com a minha esperteza e rapidez em organizar papeladas, me convidou para ser secretária do Banco. É claro que aceitei o convite e com pesar acertei minhas contas com doutor Luís Aldo.
Lá fui eu para meu novo emprego. Novo em todos os sentidos porque, na época, aquela era a única instituição bancária que admitia mulheres entre seus funcionários. Éramos 5 secretárias. Ou seja, posso dizer com orgulho, que por volta de 1956 fui uma das primeiras mulheres a trabalhar como secretária num banco.
Ali fiquei até abril de 61, quando me casei. Na época, por incrível que pareça, não era permitido às mulheres casadas trabalharem fora. Fui despedida com todos os meus direitos pagos.
Em dezembro de 62 as coisas já haviam evoluído. Prestei um concurso no Hospital das Clínicas, passei e dali uma semana já trabalhava como telefonista. Na época, nosso querido diretor era o doutor Paulo Gomes Romeo e fiquei no cargo até 1977 quando me concursei para escriturária e fui trabalhar na farmácia do HC.
Um ano depois, novo concurso, dessa vez para Auxiliar de Farmacêutico. Passei em 19 lugar e fui chamada na primeira turma e lá trabalhei bastante até 4 de janeiro de 1989, quando aconteceu a deliciosa festa da minha aposentadoria.
Agora é só alegria. Agradeço a Deus pela vida que me deu, a família que tenho, com três filhos, sete netos e uma neta, além de toda a parentada, muitos amigos e companheiros do PIC da Vila Tibério e de outras associações que frequento, como o Lyons.
Sou viúva, mas tenho um companheiro, desde 2007, o Márcio, de 69 anos, que amo de paixão. A história do nosso encontro vale a pena ser contada. Uma manhã, eu estava passando café de camisola, robe e chinelinho, tudo cor de rosa, e o chinelinho com pedraria, porque sou assim, muito enfeitada mesmo. Tocou a campanhia e era um homem procurando meu filho que, segundo disse, era seu contador. Era bonito, de olhos azuis e cabelos grisalhos. Sentiu o cheirinho do café e comentou. Eu, claro, ofereci uma xícara. Trouxe numa bandejinha toda arrumada e ele tomou e fumou um cigarro
Ali ficamos conversando. Contamos um ao outro nossas vidas. Disse que morava sozinho e sentia muita solidão. Depois, dei-lhe meu telefone porque tinha que sair. Mais tarde ele ligou pro meu filho e disse que tinha gostado muito de mim, que eu era bonita e educada. Ligou naquela noite e em todas as outras. A gente conversava muito. Um dia me convidou para sair e eu disse que à noite não. Fomos então almoçar e estamos juntos até hoje.

Laura Apparecida Morano Mendes Coutinho


Laura Apparecida Morano Mendes Coutinho
com 77 anos, recorda uma trajetória de luta e 
superação na cidade que a acolheu. 
Os Campos Elíseos enfeitaram sua infância e juventude, 
quando trabalhou como operária 
em fábricas que não existem mais.


Tecendo e fiando memórias


Nasci em Uberaba, Minas Gerais, em 1935. Em 1946 nossa família chegou em Ribeirão – mamãe, eu e mais quatro irmãos, dois homens e duas mulheres. Papai já estava trabalhado aqui há quase um ano e foi assim que conseguiu comprar um terreno a prazo e construir dois cômodos para nos abrigar.
Eu tinha apenas 11 anos, mas me lembro como se fosse hoje. Chegamos de trem de ferro, a antiga “Maria Fumaça”. Ribeirão nessa época tinha três estações: uma situada onde hoje é o bairro do Quintino II, chamada Estação do Alto, que ainda existe; a Estação do Barracão, no bairro que depois passou a se chamar Ipiranga; e a Estação do Centro, que não existe mais e era perto da Vila Tibério e da rua Luís da Cunha.
Na Estação do Centro, quando fechavam a porteira para o trem passar, os pedestres passavam por um túnel que tinha uma escadaria.
Minha mãe e os cinco filhos descemos na Estação do Barracão. Roberto, noivo da minha irmã mais velha estava nos esperando e fomos a pé até a casa da mãe dele, dona Maria. Andamos muito até chegar na rua João Clapp e descobrimos que dona Maria morava numa casinha que pertencia ao asilo chamado Lar dos Vicentinos. Era um quintal onde havia várias casinhas e um só portão de entrada e saída.
Há muito tempo reformaram o asilo e as casas não existem mais, O lugar, no entanto, ficou bem grande, confortável e bonito e continua funcionando até hoje.
Chegamos na nossa nova morada, na rua Aliados, embora naquela época não existissem placas de rua. Mamãe ficou muito feliz.  Papai era pedreiro e com muito sacrifício fez os dois cômodos – a cozinha e o quarto, onde dormiam meus pais e os cinco filhos. A casa era “de chão”, não tinha reboque nem luz. Tínhamos uma lamparina de querosene e a fumaça era muito fedorenta. A gente amanhecia com as narinas pretas de inalar a fumaceira do querosene.
Também não tinha esgoto, era foça. E a privada era um buraco. Faltavam algumas telhas e a gente dormia admirando as estrelinhas no céu. Água encanada também não tinha. E durante muitos anos tirávamos água do poço que o papai furou e chamava de cisterna. Tinha o sarrilho para puxar a água com balde e de vez em quando a água sujava. Aí precisava limpar todo o barro solto até a água ficar limpa.
Uma vez precisou limpar o poço e meu irmão mais velho não teve coragem de descer pela corda pra limpar. Eu que desci lá no fundão. Mamãe me amarrou num pedaço de pau como se fosse um balanço. Eu montei a cavalo nesse “balanço” e ela foi me descendo devagar. Eu só falava pra ela olhar se não tinha cobra. Mamãe descia o balde pela corda, eu pegava aquele barro e colocava no barro. Ela puxava até aparecer água limpa de novo. Depois disso, meus irmãos criaram coragem e desciam pra limpar a cisterna.
Morávamos perto da avenida Saudade com rua Humberto de Campos e ali perto havia poucas casas. Descendo a avenida, depois do Cemitério só tinham duas ruas. O resto eram largos por onde transitavam carroças, sem casas, só mato, com gabiroba. Tinha também umas árvores chamadas Arueirinha e não era qualquer pessoa que podia subir nelas – minhas irmãs ficavam todas empipocadinhas. Eu não, eu subia.
Tinha uma escolinha, onde a professora chamava Cândida Teixeira Golfetto, mas todo mundo a conhecia como dona Filinha. Tenho muita saudade dela. A escolinha era só um salão, onde as crianças estudavam todas juntas, 1, 2 3 ano primário. Fui matriculada no 3.
Passei de ano e fui estudar no “4 Grupo Escolar”. Tirei o diploma em 1948, com média 98 e não continuei os estudos. Naquela época os pobres só ganhavam bolsa de estudo se tirassem diploma com 100. Nunca me esqueci da minha professora. Ela se chamava Alice de Castro Prado. Como gostaria de reencontrá-la.
Antes de chegar em Ribeirão, de tanto meu pai mudar de cidade em cidade, eu atrasei todo meu estudo. Quando saímos de Uberaba eu tinha 8 anos e cheguei em Ribeirão com 11. Nesse período de três anos fomos para Conquista, em Minas, de lá meu pai mudou para a Usina Junqueira, depois voltou para Conquista e de lá foi para a Fazenda do Barro Preto. Eu e meu irmãos ficamos em Conquista para podermos ir na escola. Só íamos pra casa aos sábados.
Nessa época morei na casa da minha tia e madrinha Amélia e fui pajem da minha prima Sonia, quando ela tinha um aninho. Hoje as duas já morreram, mas eu tenho muita saudade. Na escola em Conquista, a professora me deu uma poesia bem grande pra decorar em duas semanas. Tinha XI versos. Até hoje não esqueci. Chamava “A Flor de Maracujá”  e eu declamei numa festa.
Já em Ribeirão, de onde eu morava até a Rua Pernambuco a gente podia cortar caminho, porque o cemitério só ia até a cruz que tem lá no meio. Era o caminho da “roça”. Tinha um pomar enorme do asilo Padre Euclides, encostado no muro do cemitério. Um dia meu irmão e uns colegas foram pegar laranja, colocaram as laranjas dentro da camisa e voltaram pelo cemitério. Era noite e eles subiram num galho pra pular o muro. O galho quebrou, no escuro, e vinha descendo um homem todo de branco. Meu irmão contou que ficou mudo de susto e disparou pelo caminho de volta.
As crianças também faziam caveira com mamão verde, colocavam uma vela dentro e punham em cima do muro do cemitério. Ficava todo mundo escondido esperando alguém levar susto. Lembro-me também da famosa quermesse do asilo, com um trenzinho que circulava dentro do pomar. Era muito gostoso e divertido.
O ônibus só chagava até o começo do Cemitério, onde hoje é a rua Flavio Uchôa e depois voltava pela avenida Saudade que, na época tinha um canteiro no meio, com árvores grandes e em frente ao asilo havia um monumento. Na avenida tinha também o Educandário, que na época começava ali e já abrigava crianças. Era muito bonito, com sua entrada formada por grandes colunas e dois arcos.
No bairro já tinha também o Bosque Municipal, onde sempre gostei de passear. Outro lugar que passeávamos bastante era na casa de um tio-avô que morava na Fazenda Aliança. A avenida Portugal era um estradão de terra, onde passavam as boiadas. Nós íamos por ali passando pela Santa Cruz, até chegar na fazenda.
Nos  Campos Elíseos tinha três cinemas, dois na avenida Saudade, o Cine Santana e o Cine Campos Elíseos. O outro era o cine Santo Antonio, na rua Paraíba, ao lado da igreja de mesmo nome. Neste cinema eu arrumei meu primeiro namorado, quando tinha 17 anos. E, anos mais tarde, com 21 casei-me na Igreja Santo Antônio, a belíssima construção que todo mundo conhece. Na minha adolescência também conheci o Cine Avenida, que ficava na Jerônimo Gonçalves. Ali assisti ao Ébrio, com o grande Vicente Celestino e no Cine São Jorge vi Luís Gonzaga,o Rei do Baião. Fui muitas vezes também no Cine Plaza, na Duque da Caxias, em frente a Praça XV, onde também ficava, em outra esquina, o Cine Centenário. E assisti muito filme no Cine São Paulo, na São Sebastião, pertinho da Álvares Cabral. Infelizmente nenhum desses cinemas existe mais. 
Na Saudade com a João Clapp lembro-me do famoso Café Bestetti e. antes da rua Tereza Cristina tinha um hospital de doentes mentais chamado Esquirol. Jamais esquecerei do Círculo Operário, na rua São Paulo, que ainda existe, mas não tem mais as atividades que tinha na minha adolescência. Mamãe nos levava lá para assistir a dramas e duplas de cantores muito bons. Depois até ganhei muitas serenatas de um deles, que acabou se mudando para São Paulo e eu nunca mais vi. 
Também na avenida Saudade  já existia a nossa querida Santa Casa que ainda está de pé e bem firme. Na esquina com a rua Patrocínio tinha uma fábrica de vassouras e, com 13 anos fui trabalhar lá. Foi meu primeiro emprego
Minha mãe passou a trabalhar na Fábrica de Tecidos Matarazzo e graças a Deus, aos poucos a casa foi aumentando, até que terminou com três quartos, sala, cozinha e banheiro.
Quando completei 14 anos entrei na Matarazzo, onde trabalhei com teares que fabricavam os tecidos de algodão. Essa fábrica era muito grande - havia muitos salões com maquinário e centenas de empregados. Chegavam caminhões com fardos de algodão ainda com caroço e dali saiam depois tecidos alvejados, crús e estampados. Quando me casei, em 1956, sai da fábrica. Só 30 anos depois, em 86, voltei a trabalhar na mesma fábrica. Só que não era mais dos Matarazzo e passou a se chamar Cianê. Trabalhei ali até 1994, quando fecharam a fábrica.
Nos anos 80, eu jogava Bocha e era atleta do Clube Ipanema. Parei quando voltei a trabalhar. E quando a Cianê fechou comecei a frequentar o Núcleo da Terceira Idade dos Campos Elíseos e jogava para a Seleção de Ribeirão Preto. Depois precisei parar por causa de dor no ombro. Não pude mais ser atleta, mas hoje sou atriz. Faço teatro com o grupo do Núcleo. Já apresentamos várias peças em diferentes lugares com muito sucesso. Já fiz parte também do Coral e como gosto muito de bordar, ensino bordado em casa e em outros lugares.
Atualmente, quando vejo o prédio da antiga Cianê, vejo que o local está num abandono total. A gente, que trabalhou ali, fez amigos, sustentou a família, viveu tanta coisa, sente muita tristeza quando passa por lá.

Antonio Carlos de Araujo

Antonio Carlos de Araujo teve pai ferroviário 
e acompanhou as lutas da categoria na época 
das greves. Aprendeu o ofício de gráfico, 
trabalhou muito, ganhou e perdeu. 
Mas lembra com uma incrível memória dos 
bons tempos da mocidade e de muitos lugares 
de Ribeirão. E hoje sabe que o que fica 
é a dignidade e o respeito.



Sem parar de Lutar


Nasci em Ribeirão Preto, na Vila Tibério, no ano de 1940. Meu pai, João Araujo, trabalhava na Companhia Mogiana de Estradas de Ferro, numa época em que o pagamento costumava atrasar muito, às vezes até três meses.
Na época do governo Ademar de Barros aconteciam fortes greves dos ferroviários que a essa altura estavam completamente sem crédito nos armazéns para poderem fazer suas compras e sustentar a família. Meu pai contava que a Mogiana colocou uma cooperativa a disposição dos empregados – um vagão com mantimentos estacionado no pátio da Estação.
Essa era a única saída para comprarem, mas o valor total das despesas acabava engolindo quase todo o salário mensal de cada operário.
Dessa forma, aos 7 anos de idade eu precisei começar a trabalhar. Pus uma caixinha de madeira no ombro e fui engraxar sapatos na Praça XV de Novembro e em outras praças da cidade.
Fiz o curso primário do Terceiro Grupo Escolar, hoje Sinhá Junqueira, na praça Coração de Maria. Lembro-me bem da professora Elena, do segundo ano. Aos 15, entrei numa fábrica de vidros na rua Martinico Prado, entre a Conselheiro Saraiva e a Conselheiro Dantas, também na Vila Tibério. O local era muito insalubre, com um forno que lançava uma chama alta sem parar. Eu, que era muito franzino, só suportei durante um ano e meio. Aí um médico me orientou a sair.
Com 18 anos comecei a entregar jornal. Era O Diário, então de propriedade de Costábile Romano e situada na Américo Brasiliense 150. Ali trabalhei numa máquina manual Minerva durante um ano. Depois fui para a Gráfica Cravinhos, na rua José Bonifácio, ao lado do Mercadão. Mais tarde, outra mudança, para a Gráfica Eduardo, na mesma rua.
Na juventude, durante a década de 50, frequentei muito o Cine Avenida, que era na Jerônimo Gonçalves, entre a Duque de Caxias e a Mariana Junqueira. Ali assisti a filmes como O Zorro, Flash Gordon e Tarzan. Próximo à porta do cinema estacionavam carrinhos de garapa, pipoqueiros e vendedores de amendoim. Além disso, tinha um porteiro que volta e meia era enganado pela garotada que entreva sem pagar ingresso. No interior do cinema, circulava um moço com uma lanterna, o lanterninha, vasculhando tudo.
Havia outros cinemas em vários locais da cidade. O Santa Helena, na rua Lafaiete, na Praça Sete de Setembro; o Cine São Paulo, no térreo do Edifício Diederichsen, na rua São Sebastião; o São Jorge, lá embaixo, no início da Álvares Cabral. O Teatro Pedro II, no Quarteirão Paulista, também tinha virado cinema e lá a gente via filmes de cowboys e do Mazzaropi. Na Vila Tibério tinha o Cine Marrocos, na Luís da ampos Elíseos, na Avenida Saudade, além do Cine Santa Teresinha, no final da Visconde Inhaúma, onde era a Vila Japão.
Era um monte de cinema e a gente assistia grandes filmes como E o Vento Levou, Os Dez Mandamentos e Ben-Hur. Os garotos catavam sucata de ferro velho, fios de cobre e alumínio para juntar dinheiro e assistir aos seriados no Cine Avenida.
Eu também costumava assistir espetáculos no Circo Rosário, perto da Rodoviária e nos finais de semana frequentava a Praça Coração de Maria, na Vila Tibério, onde existia um coreto com uma banda, que chamavam de “ a furiosa”. As moças andavam em círculo para um lado e os moços para o outro. Com o rabo do olho, admirávamos as meninas com suas fitas prendendo os longos cabelos e os vestidos armados pelos saiotes.
Ali perto da praça, no quarteirão de baixo, havia uma sorveteria que também era um barzinho e pelo alto falante ouviam-se músicas românticas da época e os apaixonados as ofereciam para as moças. O convite dos rapazes para as moças na época costumava ser: “Posso acompanha-la até a sua casa?”  Mas o difícil mesmo era pedir autorização de namoro para os pais delas.
Outra paixão era o futebol. O estádio Luís Pereira, do Botafogo, ficava entre as ruas Paraíso e Barão de Cotegipe, na Vila Tibério. Ficou lá até 67, e reiniciou suas atividades no Estádio Santa Cruz, em 68. No antigo e acanhado campo, a rapaziada torcedora do time que não tinha dinheiro pulava o muro e caia do outro lado nomeio da multidão, onde não existiam arquibancadas. Em volta do gramado havia uma cerquinha de ripas de jogadores, mesmo quando um atleta ia cobrar um tiro de canto.
Nas gerais altas e de madeira, muitos grandalhões tomavam umas cervejas e viravam valentões – se desentendiam com os rivais e brigavam de mãos limpas. A polícia prendia todo mundo que estava na briga e eles eram transportados na Ramôna, o carro de presos. Mas na rua eram soltos, afinal a maioria era formada por trabalhadores.
Uma  grande emoção foi a partida que levaria o time para a primeira divisão: Botafogo F.C. e Rádio de Mococa. Todos com a emoção à flor da pele; gritos, frases de incentivo. Mas mesmo um bom atleta chutando um pênalti a favor da casa, não garantiu a vitória. Que tristeza! Final zero a zero. Então, no ano seguinte o time subiu pela primeira vez – Paulista de Jundiaí zero, Botafogo um.  
O Comercial era no campo da Mogiana. Estádio Costa Coelho, na avenida Primeiro de Maio com a Guatapará, na Vila Virgínia. Gerais também de madeira. Ali vários comercialinos tiveram a oportunidade de assistir naquele gramado a famosa equipe do Santos F.C. com Pelé, Pepe, Gilmar e outros craques.
Lembro-me também, perfeitamente, da Paulicéia, um bar e lanchonete que ficava entre as ruas General Osório e Álvares Cabral, no Quarteirão Paulista, onde hoje está o Pinguim 2. Ali em frente a garotada comprava as famosas figurinhas Atlas.
Numa das portas havia uma grande radiola, muito bonita e através da janela de vidro viam-se os discos 78 rotações empilhados, um braço com agulha amarelinha na ponta do lado de baixo. No balcão, compravam-se fichas que eram colocadas numa abertura do aparelho, fazendo cair um disco no prato; tocava-se, então umas teclas com o nome da música e o braço mecânico caia com a agulha sobre o disco e ouvíamos a música escolhida. d valsas, canções, sambas, tangos e tantas outras com os famosos cantores da época, como Silvio Caldas, o Caboclinho querido, Carlos Galhardo, a voz de veludo, Francisco Alves, o cantor das multidões.
Casei-me em 1963, com a Rosa, na Igreja Santo Antônio, dos Campos Elíseos. Tivemos dois filhos, Roberto e Rônei. Minha mulher trabalhava nas Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo e aos poucos pudemos começar a construir nossa casa. No começo foram dois cômodos, na rua Monte Alverne, na Vila Tibério.
Aos poucos fui aumentando a construção e como a dívida aumentava, eu pedia para fazer horas extras. Assim construí meu pequeno patrimônio – um sobrado que resultou de 25 anos de trabalho. Nessa altura, meus dois filhos se casaram e já trabalhavam em gráfica também. 
Aposentei-me em 1986, mas continuei trabalhando em gráfica mais 7 anos. Depois comprei uma moto e comecei a fazer entregas de remédios para uma farmácia de manipulação
Mas houve alguns percalços duros. Um deles muito triste, quando perdi o que tinha com um mau negócio. Fui aconselhado a vender o sobrado e comprar um caminhão para transporte de cana de açúcar, que custou mais do que o valor da casa. Calculei que ganharia um lucro nesse trabalho que me permitiria juntar um bom patrimônio outra vez. Mas os gastos eram maiores que os ganhos e acabei ficando sem dinheiro e sem casa para morar.
Nessa época foi muito triste- sempre que eu e minha mulher nos olhávamos chorávamos copiosamente e ficamos muito abalados. Mas toquei a vida. Empreguei-me novamente em farmácias de manipulação. Após um ano, porém, mais um tropeço. Tive problemas de saúde, meus rins pararam de funcionar e fui internado no Hospital das Clínicas.
Mais uma vez superei o problema e empreguei-me como vigia numa firma da cidade, no bairro da Lapa. Protegido por um guarda-sol de praia, às vezes sentado numa cadeira, espero os caminhões chegarem para abrir o portão e assim vou indo.
Sou amigo de todos que transitam por ali, pessoas, cães e pássaros, tanto faz. É “bom dia dona Maria, boa tarde seu João”. Hoje sei que os períodos de tristeza já passaram e a revolta, o vento levou. O que fica é o trabalho, o respeito e a paciência que hoje me fazem um homem feliz.

Ana Curilofo


Com 76 anos, Ana Curilofo é conhecida por todo 
mundo como Xuxa, talvez por parecer mais uma alemã. 
Mas sua ascendência é italiana e ela 
mostra que na vida o que vale é força, 
perseverança e alegria


Campeã na vida e nas quadras

Minha história começa muito longe. Meu avô era da Itália e veio para o Brasil como milhares de imigrantes, na esperança de ganhar dinheiro. Antes de vir para cá, ele se casou e deixou minha avó na sua pequena aldeia para tentar sozinho a sorte na América. 
Somente depois de comprar umas terras, voltou para a Itália para buscar a esposa. Só que minha avó ficou grávida e eles não puderam viajar, porque a viagem era de navio e demorava seis meses para chegar aqui. Dessa forma, meu pai nasceu na Itália e só veio para o Brasil com seis meses.
Aqui, o casal construí u  uma casa, onde nasceram mais 5 filhos. Aos poucos todos os seis se casaram. Quando meu avô morreu, meu pai comprou a parte de seus irmãos nas terras que ficavam na divisa entre Sertãozinho e Ribeirão Preto,- onde um córrego dividia as duas cidades - e começou a cultivá-las.
Ele e minha mãe tiveram 11 filhos, 9 mulheres e 2 homens. Santa morreu com seis meses e tinha ainda João Batista, Laura, Sebastiana, que morreu com 19 anos, aos 6 meses de casada, Izaura, Aparecida, Carlos, Batista, Palmira, Maria e eu, Ana.
Nasci em 1936, no sítio. Sou uma caipira nascida e criada na roça. Dos 11 aos 24 anos a gente morou na fazenda do doutor Isaías Ferreira, em Sertãozinho. Sempre tive o sonho de ser da Marinha, não sei por que, já que  nunca tinha visto o mar, nem pessoalmente nem pela tv ou pelo cinema que eu também não via. Ou melhor, via só uma vez por ano, em Cruz das Posses, quando a gente assistia a Paixão de Cristo num armazém improvisado., Mas assim mesmo ficava sonhando com a marinha, os navios, o uniforme, o marzão. Não sei de onde saiu isso, mas era um sonho.
Fui a última a casar, com 24 anos, com um vizinho de sítio. Foi só pular o córrego e estava no município de Ribeirão Preto, onde passei a morar no sítio do meu sogro, com meu marido, Paulino Curifolo.
Quem fez serviço de roça como eu, não tem medo de nada- arei terra com o burro puxando o arado, plantei café, milho, arroz e pra cortar arroz ninguém melhor que eu - cortava com ferro e era contratada pra “puxar eito” porque era mais rápida e esperta do que os próprios homens, trabalhava mais do que eles. Eles me punham na frente, como uma isca, pra eles tentarem me acompanhar.
No dia 28 de maio de 1962 nasceu minha filha e quando  uma irmã minha morreu peguei suas duas filhas pra criar, uma com 10 anos e outra com 1 ano e 10 meses. Também fazia costuras pra fora pra ajudar meu marido que, já na cidade, tornou-se motorista de taxi com ponto no Ipiranga, mas teve que ficar parado um ano depois que atropelou uma criança e ficou sem carta durante seis meses.
Um carroceiro levava minhas costuras para as feiras e eu ia de bicicleta para todos os bairros da cidade, vendendo. Acabei me aposentando como costureira, depois de ficar viúva, aos 61 anos.
Faz 13 anos que trabalho como voluntária no núcleo da Terceira Idade dos Campos Elíseos. Dou aula de pintura em tecido e bordado em vários lugares, faço Coral e Teatro e joguei Volei dos 50 aos 70 anos. Com 60 participei de um campeonato. Dizem que eu jogava bem, no ataque e na defesa. Comecei essa história de esporte de brincadeira, com umas amigas do núcleo, depois ficou de verdade, com um professor de ginástica. Fomos para a seletiva regional da terceira idade de Sertãozinho e trouxemos um troféu para Ribeirão, uma taça enorme.
Tenho dois netos e uma neta, a Francine, que é o retrato da avó. Faz todo tipo de artesanato e tem um salão de beleza. Trabalha na minha casa, dei a sala e o alpendre pra ela. A outra neta, Flávia, trabalha com os pais, que têm um atacado de cereais na Lagoinha e o neto, Fernando, trabalha numa fábrica de correntes e também mora comigo, com a mulher e dois filhos. Todo mundo trabalha muito e tem uma vida digna. Por isso sou uma mulher feliz, porque toquei minha vida, construí uma família e gosto de todo mundo- criança, velho, moço.

Sérgio Ferreira Borges


Sérgio Ferreira Borges
70 anos é o Mr.Simpatia. E adora relembrar 
os velhos e bons tempos dos pastos com 
vaca brava, pé de pitanga, pequi  e jatobá, 
footing na Praça XV, Baile Branco. 
Craque na pescaria, no futebol e no vôlei, 
vive ganhando medalhas e 
não troca Ribeirão por nada


Esportista e dançarino


Nasci em 1942, num sítio chamado Cortado, no município de Guará. Ficava  perto de São Joaquim  da Barra, a 4 quilômetros de um pequeno povoado chamado Pioneiros. Ali  cursei o primário e no ginásio em São Joaquim, meu irmão ganhou o apelido de Bacurizão e eu de Bacurizinho.
Diariamente percorríamos 8 km para ir à escola. Ao retornar para casa, havia a época das frutas do cerrado, como gabiroba, pitanga, marmelo, jatobá, marôlo, pequi, mamica de cadela. Conviver com o medo também fazia parte do aprendizado. Investidas de vacas paridas, cachorro louco, cobras e outros animais peçonhentos faziam parte do nosso cotidiano. Tudo compensado pelas amizades e o contato com a natureza- nascer da lua, por do sol, chuva fazendo soldadinhos ao bater em goteiras no chão, caçar vagalumes ao cair da noite, colher algodão, vento ondulando os arrozais, poeira vermelha por trás da qual nos escondíamos.
Comecei a trabalhar com 7 anos, coisa comum naquele tempo, o que fazia com que as crianças fossem mais responsáveis e respeitosas com o próximo, a natureza e as instituições.
Meus pais, Sabino e Laura, mal aprenderam a ler, mas acumularam um grau de experiência e sabedoria invejáveis. Ele, muito inteligente e empreendedor,  chegou a montar até uma mini-usina no sítio, o que abolia a lamparina e era usada para tirar água da cisterna e com isso montou uma fábrica de farinha de mandioca, onde toda a família trabalhava.
Dona Laura gerou 5 filhos, chegou a lavar roupa a um quilômetro de casa, além de matar porco e armazenas a carne em tachos de banha, cultivar horta, fabricar sabão, fazer queijo, manteiga e doces deliciosos que não estragavam apesar de não termos geladeira. Sem contar as aptidões médicas dela que curava usando produtos naturais, aplicava injeção e fazia parto.
Em 1958, quando eu tinha 16 anos, mudamos para Ribeirão. Fomos morar numa casa na Luís da Cunha com a Castro Alves, quase à sombra da já famosa Cia Cervejaria Antárctica. Naquela época, carro não era acessível a operários. Assim, quase todo mundo andava de bicicleta, o veículo usual dos empregados, que lotavam as ruas do bairro nos horários de entrada e saída da fábrica.
Lembro do toque da sereia das cervejarias Antárctica e Paulista nos horários principais, ouvidas até os limites da então pequena cidade. Também logo ali, na divisa da vila com o centro ficava a estação ferroviária, a Mogiana, uma das principais responsáveis pela pujança da nossa região. A cancela controlava o trânsito a cada passagem das máquinas ou trens de ferro.
Na Luís da Cunha tinha a padaria dos Irmãos Crispim, na esquina da Praça Coração de Maria, com a igreja do mesmo nome. Nessa padaria, as famílias se abasteciam com quitutes e um pão “bengalão”, quentinho que até derretia a manteiga. A praça era o ponto de encontro para quase tudo, de lazer a casamentos. Quando eu cursava o ginásio Santos Dumont, por volta de 1960, a Luís da Cunha não ia além da escola. O resto era pasto, com bois, cavalos e chácaras. O problema era o cuidado para não pisar no estrume fresquinho. Existia também um riacho represado que formava um poço que a garotada curtia como piscina.
Na Jerônimo Gonçalves os troncos das palmeiras imperiais escoravam feixes de varas pra pescar, vendidas aos amantes da pescaria. As muretas de proteção às margens do rio ficavam ladeadas de pescadores tentando capturar lambaris, mandis, chorões e bagres, enquanto meninos mais arrojados desciam os paredões de pedra para meter as mãos nas locas e pegar cascudos ou cágados.
Logo ali, entre as ruas Duque de Caxias e Mariana Junqueira, havia o velho Cine Avenida, frequentado pela garotada e por pessoas mais pobres. Em vez de poltronas havia cadeiras de madeira unidas por ripas. Sempre que apareciam alguns trocadinhos, eu e meu irmão Cláudio íamos curtir um cineminha.
Concluído o segundo grau e já trabalhando num escritório, me matriculei no curso de Contabilidade do Moura Lacerda e a vida de bairro foi trocada pela Praça XV com o Teatro Pedro II, a Fonte Luminosa, em volta da qual a mocidade buscava sua “alma gêmea” e o já famoso chopp do Pinguim, Os edifícios do então Hotel Umuarama, na São Sebastião e Diederichsen eram os mais imponentes da cidade.
Ainda me lembro que a rua General Osório era por onde os blocos carnavalescos passavam , os carros enfeitados no carnaval rumavam no sentido do que hoje é a avenida Independência. A rua ficava tomada por serpentinas, confete, com o povo cantando e brincando em perfeita harmonia.
Ia-se muito também ao Bosque Municipal, com entrada principal naquela época pela rua Tamandaré. Logo à direita da entrada tinha um bambuzal sob o qual havia uma pista de bocha muito concorrida. Mais a frente tinha os animais, o aquário, o restaurante conhecido por suas noitadas dançantes.
Outro orgulho que tínhamos em Ribeirão era a Faculdade de Medicina da USP. Além dos pesquisadores e estudantes de primeiro time, a Medicina ainda patrocinava o inesquecível Baile Branco, esperado por todo mundo lá pela década de 60. Lembro que uma vez, no final do baile, dei carona para 11 moças, todo orgulhoso do meu primeiro carrão, uma perua DKW.
Bons momentos também eu vivi no Clube Palestra Itália, onde entrei com 17 anos como dependente do meu pai. O clube tinha sido reativado somente com as piscinas. Depois vieram as quadras e o campinho de futebol, onde desenvolvi grande parte das minhas habilidades futebolísticas, completadas no Juventus, um clube com sede no Bar do Juca perto da avenida Nove Julho. Ali fui convidado para jogar no Comercial. E no Juventus foram revelados craques como Sócrates, Carlos Cesar e Leão.
Bons tempos
Mais tarde, trabalhando num banco, fui promovido, mudei-me para São Paulo e lá fiquei até me aposentar. Mas nunca me esqueci da querida Ribeirão, principalmente dos grandes amigos e das pescarias no Rio Pardo, onde continuei a pescar depois de voltar pra cá e relembrar os tempos de sítio.
Frequentando um grupo de terceira idade, integrei a equipe de vôlei e já conquistamos muitos troféus. Sou um homem feliz e não tenho do que me queixar. Imaginem que já fui eleito até Mr. Simpatia!

Lúcia Norma Genovese Falcucci

Lúcia Norma Genovese Falcucci 
tem 80 anos, é descendente de italianos e, 
como quase todos os seus colegas, 
começou a vida no campo. 
Trabalhadeira e empreendedora, já passou 
por fábricas, feiras e hoje escreve poesia


Balas e Poesia

Nasci num sítio em Igarapava, em 15 de julho de 1932. Ainda criança nossa família (eu meus pais e três irmãos) foi para a cidade onde sofremos muitos porque meu pai não tinha profissão.
Aos 10 anos comecei a trabalhar como babá e aos 13, já na cidade de Uberaba, fui trabalhar na fábrica de balas Ibérica. Quando tinha 15 anos, finamente nos mudamos para Ribeirão Preto, onde estou até hoje. Aqui meu primeiro emprego também era doce – mais uma fábrica de balas, dessa vez, a Olímpia, que ficava na avenida Saudade.
Com a necessidade de ganhar mais para ajudar a família, continuei no caminho das balas e passei a trabalhar na fábrica Martineli. Até que mudei de ramo e me empreguei na Camisaria Duas Américas, onde caseava e pregava botões. Só que os doces pareciam gostar mesmo de mim e fui chamada para trabalhar na sorveteria Bimbo, onde fiquei até os 18 anos.
Já maior de idade passei a trabalhar na Cia Antárctica, mas ao me casar fui demitida, porque na época não admitiam mulheres casadas na empresa. Eu e meu marido, então, abrimos um bar, mas não deu certo. Pegamos, então, dois pontos na Feira, onde trabalhei por muito tempo até adoecer. Vendia adivinha o que? Isso mesmo: doces.
Mas não parei, não. Comecei a pintar estátuas de gesso e panos de prato que vendia até muito bem. Hoje sou viúva há 25 anos tenho três filhos, 6 netos e 3 bisnetos. Apaixonada por Litertura desde criança, editei 3 livros de poesias: “Sonho de Cristal”, “Ingrato Beija-Flor” e “Flor do Campo”. Participei de alguns concursos e ganhei medalhas e troféus.
Atualmente, no PIC, faço ginástica na praça  Mortari. Além disso, canto no Coral Vozes do Círculo Operário da Vila Tibério. O que posso dizer é que minha vida valeu a pena. Sou uma pessoa feliz, cheia de amigos e com belas e doces memórias.



Leonor Dalva Barros Rea


Muito vaidosa e sedutora, 
Leonor Dalva Barros Rea 
não confessa a idade, mas capricha bastante 
no visual e não recusa atividade e diversão.  
Segundo ela, o grande aprendizado que
 teve na vida foi trabalhando como professora e convivendo 
com o universo de um hospital.



Lições de Vida


Embora eu não tenha nascido nessa maravilhosa cidade, me sinto uma verdadeira ribeirão-pretana. No ano de 1969, saí da pacata cidade de Sales Oliveira, junto com minha mãe, Antonia, para lecionar no Curso de Alfabetização de Adultos, que funcionava no Grupo D. Alberto José Gonçalves, na época localizado na rua Edgar Cajado esquina com avenida Saudade.
Meu pai, Alberico, só vinha nos finais de semana, porque era vereador em Sales, mas infelizmente, morreu naquele ano. Na mesma escola, à noite eu dava aulas de alfabetização e de dia era professora substituta. 
No primeiro dia, ao entrar na classe, composta em sua maioria por adolescentes, confesso que fiquei muito assustada, pensando: “E agora? E se eles não gostarem de mim e começarem a fazer algazarra? Mas para minha surpresa, os jovens me receberam com entusiasmo e admiração. Foi amor à primeira vista de ambas as partes.
Eu me esforçava muito para eles aprenderem e os incentivava a continuarem a estudar no futuro. Felizmente, muitos daqueles alunos fizeram faculdade e outros tornaram-se bancários, comerciantes, mecânicos e hoje têm um ofício digno e são bem sucedidos.
Recordo-me daquela época com muita saudade – quando o aluno amava e respeitava o professor e se preocupava com ele. Quando terminava a aula, muitos deles me acompanhavam até o ponto de ônibus para me proteger. Outros me presenteavam com ramalhetes de flores, balinhas de canela, toalhinhas de crochê e sempre muito carinho.  Nunca os esqueci - foi uma época extremamente marcante e feliz da minha vida.
 Nessa época eu era solteira e nos finais de semana ia para a casa do meu cunhado, Joster Barbosa, que tinha uma casa de fotos na Avenida Saudade. Ele era um fotógrafo muito popular na época. Sua loja ficava ao lado do Cine Santana, onde eu e minhas sobrinhas assistíamos a filmes famosos da época, como os do Mazaroppi, entre eles, Casinha Pequenina, Tristeza do Jéca e outros. 
A fila do cinema era enorme, dobrava a esquina e nós nos divertíamos bastante. Às vezes também passeávamos na Praça XV, em volta da fonte luminosa, onde os jovens se divertiam. Nessa época, não se usava ir para baladas e barzinhos. Íamos ao Bosque Municipal, às quermesses e a alguns bailinhos, onde ensaiávamos passos do Toni Tornado.
Assisti a alguns filmes muito bons também no Pedro II, que na época funcionava como cinema. Tinha também o Cine São Jorge, lá perto da Francisco Junqueira, que era maravilhoso, enorme e passava ótimos filmes. Depois foi fechado e esquecido como muitos outros – Cine Centenário, na esquina da Praça XV, por exemplo.
A gente paquerava bastante e foi numa dessas paqueras que conheci meu falecido marido. No carnaval, os desfiles de Escola de Samba eram realizados na Avenida Saudade. Eu e minhas sobrinhas colocávamos as cadeiras em frente ao Foto Joster e assistíamos tranquilamente ao maravilhoso desfile das escolas.
No bairro dos Campos Elíseos eram realizados também outros eventos, como a quermesse do asilo Padre Euclides, que era famosa, bem organizada e muito bem frequentada. Muitas jovens encontraram seus futuros maridos na quermesse.
A pracinha Rômulo Morandi e a Santo Antonio também eram frequentadas por jovens nos finais de semana, que iam pra lá se divertir e namorar. No mesmo prédio da Igreja ao lado, funcionava o Cine Santo Antonio, onde eu tive a oportunidade de conhecer o famoso rei do baião, Luís Gonzaga. Ribeirão naquela época era maravilhosa, porque quase não tinha violência.
Lecionei em vários cursos de alfabetização, mas o salário era pequeno. Eu era arrimo de família, minha mãe estava doente e em 71 prestei concurso por Hospital das Clínicas e fui aprovada como escriturária. Nos primeiros dias de trabalho fiquei assustada porque não estava acostumada a ver tanto sofrimento. Comecei a chorar e fui parar no médico. Tive vontade de abandonar aquele emprego e voltar correndo para a escola. Mas com o passar dos dias, fui me adaptando à minha nova profissão. A enfermeira chefe da época e alguns funcionários foram muito bons e colaboraram muito comigo.
Em 72 entrei na Faculdade, no curso de Letras, na Moura Lacerda, onde anteriormente eu cursara Pedagogia. Eu trabalhava um período, ia pra Faculdade e à noite continuava lecionando. Ficava cansada, mas era jovem. Dava pra aguentar.
No ano seguinte, me casei, mas continuei trabalhando e estudando Dois anos depois tive minha filha, depois meu filho. Passei num concurso para lecionar Português e Inglês, mas não podia me mudar – tinha meu marido e minha mãe aqui e eles precisavam muito de mim.
No HC eu aprendi muito. É uma verdadeira escola de vida, onde a gente aprende a crescer como ser humano e a ver que não somos nada e não temos que ter orgulho – de um momento para outro a nossa vida pode desmoronar e passarmos a depender do carinho e da ajuda dos outros. A doença nos fragiliza e nos deixa sensíveis.
Também fiz muitas amizades no HC. Aprimorei meus conhecimentos, pude proporcionar uma vida melhor aos meus filhos e saí de lá bem melhor do que entrei, porque aprendi o verdadeiro valor da vida. Ali conheci excelentes profissionais que tinham vocação e se entregavam ao trabalho, como o médico que chorava quando algum paciente morria, ou os auxiliares de enfermagem que tratavam os pacientes com verdadeira dedicação, como se fossem pessoas da família.
Aprendi também que a fé, o otimismo e a vontade de viver ajudam muito na alta hospitalar, assim como a presença e o carinho dos profissionais. 
Desde essa época venho refletindo que os funcionários da área da saúde mereciam ser mais valorizados pelo governo e ter melhor remuneração. Trabalham muito, sob muita tensão, porque um simples erro pode ser fatal, por negligência ou falta de conhecimento de profissionais mal preparados.
Minha função era de grande responsabilidade porque eu distribuía a medicação aos pacientes de acordo com a prescrição dos médicos. Não podia errar. Alguns pacientes vinham cantar Carinhoso comigo, autorizados por minha chefe. E no mês de Junho fazíamos uma festa junina para os pacientes, quando eu me fantasiava e dançava pra valer. Cheguei inclusive a ser a noiva da festa. Na hora do café, eu costumava contar histórias tristes da minha vida de um jeito engraçado, fazendo todo mundo rir.
Mas como tudo passa, depois de 30 anos de trabalho, em 2000 me aposentei. Agradeço a Deus pela oportunidade de exercer esses dois ofícios - professora e profissional da saúde, que tanto me ensinaram a conhecer melhor o ser humano e a valorizar a vida.
As rugas marcaram o meu rosto, mas não enrugaram os meus sentimentos. Me sinto jovem e descobri que o segredo da eterna juventude é a alegria, o entusiasmo. Hoje, além de curtir filhos e netos, faço teatro no Núcleo da Terceira Idade, frequento bailes, onde arrumei um namorado maravilhoso, faço ioga, participo de desfiles de moda e assisto a peças no teatro Pedro II. Já me candidatei a Miss Terceira Idade, que ajuda muito a levantar a auto-estima. Tive o privilégio de ser classificada em terceiro lugar, mas fui eleita Miss Simpatia, com uma festa maravilha, fotógrafos e televisão.

José Cândido Cesário


José Cândido Cesáreo, 80 anos, 
aposentado do Hospital das Clínicas, 
três filhos, dois netos, uma neta. De espírito 
alegre e colaborativo, Zézinho, como é chamado, 
é um agregador, amigo de todo mundo. 
Sua grande paixão, porém, sempre foi o teatro.



A Vida é um Teatro


Nasci em 1930 e desde 35, ou seja, com cinco anos, frequentava o Teatrinho Infantil, na rua Joaquim Nabuco, na Vila Tibério. Nessa época os teatrinhos eram montados nos fundos de quintal, com coberturas de lona, como se fosse um pequeno circo.

Neles encenávamos histórias como A Mula sem Cabeça, O Currupira, Saci Pererê, além de levarmos ao palco alguns fatos reais como o acontecido com o senhor Angelim Furlaneti, o popular “Spaka montanha”. Esse cidadão, de físico avantajado e atlético, além de pai alegre e trabalhador, era um grande comilão. Contavam que ele chegou a comer de uma vez uma bacia de macarronada e 120 bananas – e depois ganhou uma corrida. Até hoje tenho minha dúvidas, mas é o que falavam.
No palco, um garoto caracterizado historiava que o Spaka praticou tantos exercícios para manter a forma, sem orientação nem atestado médico, já que na época não existiam as atuais academias, que acabou deficiente físico.
Os ensaios se sucediam e as apresentações aconteciam nos finais de semana. Os ingressos eram trocados por frutas e legumes.
Entre os participantes, lembro-me, além de mim mesmo, que todos chamavam de Zé Pretinho, filho da dona Clementina; Carlos Dias, filho da dona Liberata; Nilson, da dona Ermelinda e Hortêncio “piorra”, filho da dona Tereza. O público infantil ria às bandeiradas.
No palco contávamos também curiosidades acontecidas durante a caça de passarinhos nas diversas matas próximas, como a mata de Arranha Gatos. Através das encenações, lembrávamos os “causos” alegres e curiosos do dia a dia.
Naquele período eu e meus amigos frequentávamos o curso primário no Terceiro Grupo Escolar, depois Sinhá Junqueira, situado até hoje na esquina da Praça Coração de Maria, na Vila Tibério. Até hoje quando passo por ali me emociono com as lembranças desse tempo. 
De 1938 a 43 ali estivemos. No pátio, em fila, cantávamos o Hino Nacional de cor, todas as manhãs. Depois, respondíamos a chamada pelo nome e seguíamos para as salas de aula no térreo e primeiro andar. A tabuada de um a dez estava na ponta de língua. A última professora de que me lembro foi dona Mariana – muito enérgica, mas eficiente. Com ela, aprendíamos.
Em 1945, com o final da Segunda Guerra Mundial, tudo parecia melhorar. Fui trabalhar numa pequena fábrica de calçados, de propriedade de um senhor chamado Pedro Campana. Buscava o couro e esticava na mão. Assim, ajudava na renda familiar com alguns “milréis”.
Foi nessa época que conheci a família do diretor teatral João Vaz, o “Fumaça”. Garçon de profissão, “Fumaça” era um apaixonado pelo teatro, e na casa dele e de sua esposa, Izerita, na rua Amador Bueno depois da Florência de Abreu, todos eram artistas. Representavam na União Geral dos Trabalhadores – UGT -, situada no primeiro quarteirão da rua José Bonifácio.
Além de ensaiarem na UGT, José e os filhos do casal também usavam a própria casa para se prepararem. Os ensaios, dos quais eu participava, eram muito pesados e o diretor bastante exigente. As cenas se repetiam quantas vezes fosse preciso e não me esqueço do “Fumaça” dizendo “Vocês nunca vão estar bons o bastante, mas mesmo assim poderão se apresentar”. Bem, pelo menos era um consolo para aqueles aspirantes a astros do palco.
Naquela época, na frente do palco, na ribalta, havia uma espécie de pequena cúpula embaixo da qual se escondia o “ponto”, na verdade o próprio diretor que, abaixado ali, auxiliava os atores assoprando suas falas enquanto batia com um lápis no assoalho.
Os textos eram pouco decorados e havia muito improviso. Da coxia, alguém com o texto da peça nas mãos auxiliava cada ator na sua entrada em cena. Quantos erros e cenas invertidas! Quanta confusão provocada pelos afobadinhos. Mas criatividade era o que não faltava e o público aplaudia de pé. E no final, o elenco artístico era sempre apresentado ao público pelo Diretor, que agradecia os participantes e anunciava nova seção para o dia seguinte.
Entre os “atores” daquela época, me lembro de Ricardo Pinatti, Aristides “Tom Mix”, João Fumaça, Izerita, Idalina, Plínio, Nilton Garcia, Neuza Garcia, Lino Fazolin, Neno Nazareno, Ary Engracia e dona Pequena, mãe do ator Lima Duarte. Alguns foram embora em busca da fama na TV e nos palcos. Aqui continuávamos a montar peças clássicas como “Onde Canta o Sabiá”, “Deus lhe Pague” e outras.
No ano de 1955 eu já me considerava um verdadeiro ator, embora ainda fosse um frangote. Por essa época fiz a Admissão ao Ginásio e depois cursei os quatro anos do ginasial no Ginásio Espírita Apóstolo Paulo, na rua São Paulo com Anita Garibaldi. Em 57, a gripe Asiática chegou pra valer e quase me levou embora. Além da penicilina e do xarope Carotenol, o limão galego ajudou a contornar a situação. Mas principalmente a visita diária do médico à nossa casa, costume comum naquela época.
No Ginásio existia um Grêmio Estudantil, uma cantina no pátio e quadra de atletismo. Aos domingos, nas matinês no palco simples do auditório, os alunos apresentavam números artísticos com músicas ao acordeon, bailados em grupo, skets humorísticos. Lembro-me do Valdir, do José e do “Deserto”. Os ingressos eram frutas e bolos, o que depois nos garantia um banquete.
Nesse tempo nasciam muitas amizades sadias entre nós. Saíamos em grupo, frequentávamos bailes em barracas de lona, lá no Barracão, hoje Ipiranga, festas de casamento, cinemas e casas de amigos no preparo dos exercícios de matemática, respeitando as exigências do professor Carlos Eduardo Martinelli.
Quando um pai mais severo de uma das moças a proibia de ir ao baile, nós muito confiantes e responsáveis, íamos até a sua casa e assegurávamos ao pai bravo que cuidaríamos de sua filha. Depois de muita argumentação, eles deixavam, mas avisavam para trazermos as donzelas antes da meia-noite com eles esperando na janela. Cumpríamos o trato à risca. Eram outros tempos.
Nesse tempo também fazíamos piqueniques ao ar livre, em chácaras de amigos. O transporte era nos caminhões com carroceria de madeira. E por conta de alguns cupidos entre os amigos, vários casais se uniram para sempre. Foi nesse tempo que conheci Abigail e começamos a namorar.
Hoje, quando nos revemos, às vezes, lembramos daquele tempo com saudade das moças que protegíamos com tanto carinho e que consideramos as “flores de companhia”.
Mais tarde passei a participar do grupo teatral do Centro Espírita, dirigido pelo diretor e teatrólogo José Papa, que me apelidou de Zé Minhoca, referindo-se ao meu físico franzino e, dizia ele, à minha esperteza. Só que, apesar da minha dedicação aos palcos, precisava me sustentar. Registrei-me como funcionário do Laboratório Torres e em 1960 me casei com Abigail, na cidade de Altinópolis.
Os ensaios teatrais, porém, continuaram sob a direção do Papa, no auditório do Centro Espírita, na Mariana Junqueira, 504. A cada quatro meses encenávamos peças do próprio Diretor, no Teatro Pedro II, entre elas “O Médico dos Pobres” e “Um Passo Errado”. Além disso, nos apresentávamos em algumas cidades da região. Desempenhei vários papéis com sucesso, em peças conhecidas como o Navio Negreiro, de Castro Alves, em que eu fazia um escravo.
No ano de 1966 aconteceu um evento inesquecível para nós, do teatro amador – o Festival da Alta Mogiana, acontecido no Salão Dom Alberto, atrás do palácio episcopal, na esquina da rua Tibiriçá com a Prudente de Moraes. A cada noite, um grupo diferente se apresentava e tudo era muito caprichado, desde a pontualidade até o guarda-roupa. Minuciosamente, cada um desses itens era levado em conta para ser avaliado.
Entre os grupos participantes estavam o Grupo Teatral Eurípedes, do José Papa, o grupo do Seminário de Brodowski; o grupo da Vila Seixas, o Teatro-Escola da Vila Tibério, o Círculo Operário dos Campos Elíseos. Um dos grupos, formado por estudantes dirigidos pela respeitada professora de português Florianette Guimarães, chocou todo mundo com um texto que trazia palavrões. Por causa disso, o Círculo Operário, que apresentara o clássico “Rei dos Reis”, mas apoiara o grupo estudantil de vanguarda, foi desclassificado, para tristeza de todo mundo. A discussão que acontecia era entre os que acreditavam que o teatro tinha a função de educar e aqueles que achavam que só tinham que representar.
Confesso que me senti fortemente surpreso ao ser anunciado como Melhor Ator. Fui calorosamente aplaudido e me prometeram o troféu Jeca Tatu, uma escultura de uns 30 centímetros que mostrava um caipira alto, magro, de cavanhaque, olhando o edifício Martinelli. Mas o troféu nunca chegou.
O tempo passou e de vez em quando, em datas comemorativas, eu participava de algum festival com dramas e skets decorados, poesias e números musicais. Após cada apresentação e durante muito tempo, os atores eram confundidos e chamados pelo nome dos personagens - Menino Henrique, Jonas, Pai João etc.
Entre 1978 e 93 trabalhei como Auxiliar de Enfermagem do Hospital das Clínicas, no campus da USP, onde tive a oportunidade de me apresentar numa peça sobre Lixo Hospitalar. O personagem principal chamava-se Beldo, um caipira lambão, catador de papel. Eu fiz o Petrolino.
Depois que me aposentei, lancei meu primeiro livro, “Sonhos da Minha Infância”, de contos. Por volta do ano 2000, de volta aos palcos, atuei numa pecinha de Lúcia Taveira sobre o mosquito da Dengue, para o setor de vetores da prefeitura, sob a direção de Antonio Sartori. Com esse meu físico, fiz, claro, o próprio aedes aegypti.
A peça teve várias apresentações – no auditório do Sesc, na Câmara Municipal, no Sesi e até no auditório do Teatro Pedro II, além da Faculdade de Enfermagem, numa sala de aula repleta de alunas.
Montamos também a peça História de Maria no núcleo da Terceira Idade dos Campos Elíseos, em que eu fazia um preto velho. A peça foi apresentada num Festival, na cidade de Jordânia, em Minas Gerais, no vale do Jequitinhonha. Ficamos uma semana - cada noite havia uma apresentação no grande palco ao ar livre, na Praça Central.
Os mesmos personagens e outros continuaram no Núcleo da Terceira Idade da rua Aliados com Avenida Saudade, sob a direção de Antonio Santana. Sempre que a peça era sobre a Dengue, eu era o protagonista, entre elas numa apresentação feita na frente do altar da igreja Santa Teresinha, na vila Tamandaré, depois da missa do padre Chico.
Hoje continuo um entusiasta do teatro. E com meus companheiros do Núcleo, sempre que possível ensaiamos e montamos peças. Além disso, estou sempre com disposição de encontrar todo mundo e aprender. Mas lembrando sempre dos bons tempos que já vivi nessa cidade abençoada e que espero viver ainda por muito tempo.